quarta-feira, 4 de junho de 2008

O Velho e o Mar

"- Velho. É o que sou. Quero tudo e nada quero. Posso? Permites-me tal ousadia? Subir a mais alta montanha, conhecer o algures e o nenhures; tocar o fundo de todos os mares e deitar-me com as estrelas e correr como o vento.

- E podes?

- Pois que posso. Que querendo vou fazê-lo. Contigo ou sem ti. Hoje. Vens? Sei que sim, se te deixassem. Porque és novo e também sonhas.

- Mas e os outros, que dizem eles disso?

- Há, esses… Não me entendem. Há-os que sim, que sabem quem fui, que ainda acreditam em muito do que sou e que me não invejam as praias brancas como a neve e os leões. Mas os outros, a maioria, esses não. Porque para eles acabei, sou um livro cerrado a sete chaves. Imaginas? Um livro poeirento, bafiento, fechado; depositado numa velha caixa de cartão, fechada; esquecida num baú de madeira carcomida, fechado; abandonado num velho sótão onde jazem aranhas de teias, fechado; parte de uma triste e quieta casa de escadas que já ninguém se aventura a galgar, fechada. Assim me vêem.

- Mas porquê?

- Porquê? Estás na idade deles, dos porquês. Pois bem: porque se fosse novo, coisa que para eles não sou, tinha o direito. De fazer como o Forrest Gump e correr o mundo correndo. Porque estamos longe, eu e eles. Como o céu do inferno; o ocidente do oriente.
Digo-lhes que sou um velho diferente. Com os olhos, porque me cansei de gastar com eles as palavras. Cansaço! Coisa de velho…

- E eles não acreditam?

- Olá! Nem que me ajoelhe e reze, coisa que não é costume fazer. Quer dizer, agora até desconfiam, mas não por ainda querer tudo nada querendo, não por isso. Pensam que sou um velho azarento, gozam-me. Má sorte, amenizam os mais cordiais. Não entendem… Não querem nem podem.

- Mas por que não lhes provas?

- A eles? Não. Posso, mas não quero nem preciso. A mim, isso sim. E é o que farei, porque se me duvido nunca mais me encontro. Por Deus que o farei! Por Deus não, que não sou religioso. Mas a expressão sai-me assim mesmo, sem pensar.
Vou. E por nós dois hei-de tornar-me lenda. Não daquelas que conheces nos filmes, não aspiro a tanto ou a tão pouco. Lenda para ti, meu rapaz, para que te orgulhes de ter conhecido um velho que não queria ser velho, pelo menos não velho como queriam obrigá-lo a ser.

- E posso ir?

- Para onde?

- Para o mar.

- Há, esse…

- Pois não é dele que falamos?

- Pois que sim, que falamos dela falando de outras coisas, inventando, complificando. Dela porque amante-mar; porque amiga-mar; porque casa-mar.

- Mas e levas-me ou não?

- Não. Quero falar-lhe sozinho e em voz alta, tocar-lhe sozinho e devagar. Ias envergonhá-la, porque és novo e ela é como eu. Vais depois, quando fores velho e já não te acreditarem.

- Espero por ti, então.

- Sei que o farás, mas não sei se o devias. Afinal, hoje é o dia oitenta e cinco, lembras-te?

- Claro!

- Isso mesmo. Já és um homem, meu rapaz. Adeus.

- Mas espera. Fala-me mais um pouco.

- Não vale a pena.

- Porquê?

- Porque não nasci em Chicago nem no século XIX; porque não sou nem nunca serei brilhante nem Nobel do que seja; porque não me comparo a ele, nem por sombras de sombras na penumbra.
Toma. Leva o livro. Far-te-á melhor proveito. E assim, quem sabe, não te tornas como eles, os outros, os que não acreditam."




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